segunda-feira, 19 de abril de 2010

O fardo da sede

Se milhões de mulheres que carregam água por longas distâncias tivessem uma torneira na porta de casa, sociedades inteiras poderiam se transformar.

Por Tina Rosenberg
Foto de Lynn Johnson


Mulheres gabras do norte do Quênia gastam até cinco horas diárias carregando pesados galões cheios de água barrenta. Uma seca duradoura levou essa já árida região a uma crise de abastecimento.

Mesmo às 4 da madrugada, à luz das estrelas, ela consegue correr sozinha pelas pedras, morro abaixo, até o rio e enfrentar a íngreme subida de volta para sua aldeia com 23 quilos de água nas costas. Ela tem feito esse percurso três vezes ao dia em quase todos os seus 25 anos de vida, a exemplo de qualquer outra mulher de Foro, a aldeia em que mora no distrito do Konso, no sudoeste da Etiópia. Aylito largou a escola aos 8 anos de idade, em parte porque tinha de ajudar a mãe a pegar água no rio Toiro.
A água é suja, imprópria para beber. A cada ano da atual seca o outrora poderoso rio se exaure mais. Mas é a água de que Foro jamais dispôs.

Aylito também precisa ajudar seu marido a plantar mandioca e leguminosas na roça, catar grama para as cabras, secar o cereal e levá-lo à moenda para fabricar farinha, preparar as refeições, manter limpo o terreno da comunidade e tomar conta de seus três filhos. Nenhuma dessas tarefas é tão importante ou tão exaustiva quanto as oito horas gastas todo dia pegando água.

Nas partes desenvolvidas do mundo, as pessoas abrem uma torneira e dela jorra água limpa. No entanto, 900 milhões de pessoas no mundo não têm acesso à água limpa, e 2,5 bilhões carecem de um meio seguro de descartar os dejetos humanos - muitos defecam em terrenos abertos ou perto dos mesmos rios dos quais bebem água. Água contaminada e falta de banheiro matam em média 3,3 milhões de pessoas por ano no mundo todo, na maioria crianças abaixo dos 5 anos. No sul da Etiópia, e no norte do Quênia, a escassez de chuva nos últimos anos fez minguar até mesmo a água suja.

No Konso, o homem carrega água apenas nas duas ou três semanas subsequentes ao nascimento de seu bebê. Garotos pequenos pegam água também, mas apenas até os 7 ou 8 anos. Essa regra é seguida à risca - por homens e mulheres. "Se garotos mais velhos carregam água, as pessoas começam a fofocar que a mãe deles é preguiçosa", diz Aylito. A reputação de uma mulher do Konso, diz ela, assenta-se no trabalho duro. "Se eu ficar sentada em casa e não fizer nada, ninguém vai gostar de mim. Mas, se eu correr para cima e para baixo pegando água, eles dirão que sou uma mulher sábia que trabalha duro."

Na maior parte do mundo em desenvolvimento, a falta d'água se acha no centro de um círculo vicioso de desigualdade. Algumas mulheres em Foro descem para o rio cinco vezes ao dia, sendo que em uma ou duas dessas viagens elas pegam água para fazer uma bebida fermentada, parecida com cerveja, para seus maridos. Quando pisei em Foro pela primeira vez, uns 60 homens estavam sentados à sombra de uma construção com teto metálico, bebendo. A manhã ia pela metade. As mulheres, afirma Aylito, "nunca têm cinco segundos para se sentar e descansar."

Num fim de tarde quente vou com Aylito ao rio carregando um galão vazio. A trilha é inclinada e, em alguns lugares, escorregadia. Descemos aos trancos e barrancos por grandes rochas ladeadas por cactos e arbustos espinhentos. Depois de 50 minutos chegamos ao rio - ou o que vira rio em algumas épocas do ano. Agora ele é uma série de poços barrentos, sendo que alguns não passam de charcos. As barrancas e as pedras estão cobertas com excremento de burros e vacas. Há cerca de 40 pessoas no rio, o suficiente para que Aylito decida se encaminhar a um ponto rio acima onde a concorrência poderá ser menor. A espera por um lugar para pegar água é especialmente demorada de manhã, razão pela qual ela costuma fazer sua primeira viagem antes de clarear o dia, deixando seus filhos mais novos a cargo de um mais velho, Kumacho, de 4 anos.

Caminhamos por mais dez minutos rio acima, e Aylito reivindica um lugarzinho para se agachar à beira de um bom poço. A criançada pula das barrancas. "Por favor, não pulem", pede Aylito. "A água fica mais suja." Um burro chega para beber do charco que alimenta o poço de Aylito. Quando o animal se vai, as mulheres tentam limpar o lugar usando suas conchas para descartar a água suja fluxo abaixo, onde está Aylito - que as repreende.

Depois de meia-hora é a vez dela. Aylito pega seu primeiro galão e a concha amarela de plástico. Assim que põe a concha na água, outro burro mete as patas no poço que alimenta seu ponto de captação. Ela faz uma careta, inconformada. Mas não pode esperar mais.
O tempo é um luxo do qual Aylito não dispõe. Uma hora depois de nossa chegada ao rio, Aylito encheu dois galões - um para si, outro que eu deverei carregar para ela. Ela ata uma tira de couro ao meu recipiente e o coloca às minhas costas. Fico grata pelo couro macio da tira - a própria Aylito usa uma corda áspera. Mesmo assim, as tiras lanham meus ombros. Com dificuldade, chego à metade do caminho. Mas, quando a trilha se torna mais íngreme, não consigo ir em frente. Envergonhada, troco de galão com uma garota de uns 8 anos; o dela tem a metade do tamanho do meu. A menina enfrenta como pode o peso do galão maior, mas a cerca de dez minutos do topo o fardo torna-se demais para ela. Aylito pega o pesado galão da garota e o instala em suas próprias costas, em cima do que já carregava. Ela nos fuzila com seu olhar de desaprovação e segue montanha acima, agora com perto de 45 litros d'água às costas.
"Ao nascer, sabemos que vamos ter uma vida dura", diz depois, sentada à porta de uma cabana, diante da mandioca que seca sobre uma pele de cabra, segurando seu filho Kumacho. "Essa é a cultura do Konso desde muito tempo antes de nós." Ela jamais questionou essa vida, nunca esperou nada diferente. Logo mais, porém, pela primeira vez, as coisas vão mudar.

Quando você gasta horas carregando água por longas distâncias, você regula cada gota. O consumo diário per capita nos Estados Unidos é de 375 litros d'água, contra 132 litros por habitante no Brasil. Já Aylito se vira com apenas 9 litros. Persuadir as pessoas a usar a água para se lavar é bem mais difícil quando ela precisa ser carregada no braço montanha acima. E, no entanto, higiene e saneamento contam muito. Somente o ato de lavar as mãos já pode reduzir as doenças diarreicas em cerca de 45%. Aylito lava as mãos com água "talvez uma vez por dia", como afirma ela. Ela se banha apenas ocasionalmente. Uma pesquisa de 2007 levantou que nem um lar sequer do Konso dispunha de água e sabão (ou cinzas, um agente de limpeza razoável) para lavar as mãos perto de suas latrinas. A família de Aylito cavou recentemente uma latrina, mas não tem recursos para comprar sabão.

A repostagem na íntegra você pode encontrar acessando o site abaixo.
Publicado em 04/2010
http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-121/busca-agua-propria-542206.shtml

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