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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Mais de 2,6 milhões fogem de conflitos no leste do Congo

Campos de deslocados estão lotados; 4 em cada 5 assentamentos são informais e não recebem ajuda oficial da ONU

23 de outubro de 2013
Adriana Carranca - Enviada especial - O Estado de S.Paulo

Campo de Refugiados no Congo
Crianças enfrentam condições precárias no campo de BulengoAdriana Carranca/Estadão

GOMA, REP. DEMOCRÁTICA DO CONGO - "Vita! Na vita", repete Muzima Rachel, de 35 anos. A palavra soa como vida, mas, em swahili, idioma falado na República Democrática do Congo, quer dizer guerra. Ela tentava explicar como a última determinou a primeira. "Guerra! Foi a guerra. Há dez anos eu fujo dos conflitos, mas eles me perseguem." O último matou o marido dela e, antes disso, o irmão.
O marido tinha 38 anos e era professor. Um dia, rebeldes do grupo Congresso Nacional para a Defesa do Povo (CNDP) atacaram Muesso, onde viviam já refugiados de outro conflito em Kivye. Os milicianos do CNDP trancaram as portas e janelas da única escola do vilarejo e queimaram todos vivos. Muzima estava grávida, por isso calcula que a tragédia ocorreu há três anos, idade do caçula.
Muzima escondeu-se na floresta com os filhos e, quando sentiu-se mais segura, eles caminharam numa mesma direção por três dias e três noites até Kitchanga. Lá, porém, "não havia ajuda humanitária". Partiram para Sake. Os confrontos, então, estouraram entre o governo congolês e o grupo rebelde M23, que atua na fronteira com Ruanda. Muzima voltava do campo, onde tinha ido buscar lenha, quando um bando cruzou. Foi estuprada não sabe dizer por quantos. Lembra-se apenas que "só o comandante usou camisinha".
Muzima fugiu de novo. Dessa vez, abrigou-se com as crianças em uma escola do campo de deslocados de Mugunga - lotado. Lá recebeu a notícia de que o irmão morrera com uma bala perdida em outro confronto. Ela arrumou as trouxas novamente e partiu, dessa vez levando os quatro filhos e os três sobrinhos, de entre 3 e 14 anos, que agora cria sozinha (a cunhada está em outro campo e não tem como cuidar dos filhos). Eles vivem no campo informal de Bulengo, na periferia miserável de Goma, no leste do Congo.
4 em cada 5 assentamentos são informais e não recebem ajuda oficial da ONUAdriana Carranca/Estadão
Nos últimos 12 meses, os conflitos deixaram mais de 100 mil deslocados na região, segundo a ONU. E o número deve aumentar com a volta dos combates entre o M23 e o governo congolês após o fracasso das negociações de paz que se desenrolavam desde agosto em Uganda.
A crise exacerbou um velho problema. No total, mais de 2,6 milhões de congoleses vivem em campos de deslocados - planícies vastas de palhoças erguidas sobre a lama. Com uma agravante: a ONU só pode operar nos campos "oficializados" pelo governo, o que leva tempo.
Na Província de Kivu do Norte, onde ocorre a maior parte dos conflitos, quatro em cada cinco campos são informais como Bulengo. Nele, vivem 60 mil pessoas, a maioria fugida dos embates deflagrados em dezembro entre governo e M23 - criado em 2012 por dissidentes do CNDP, responsável pela morte do marido de Muzima e de milhares de outros civis, mas integrado ao Exército do Congo em um frágil acordo, em 1999.
"A 'legalização' dos campos de deslocados tem componentes políticos e econômicos. Depende de quem é dono da terra e se ela está em território 'inimigo' (por exemplo, em uma região de maioria tutsi, etnia do governo de Ruanda, acusado de financiar a insurgência do M23)", disse ao Estado a funcionária de uma ONG que trabalha com deslocados.
Viver em um campo informal significa não saber quando se comerá ou alimentará os filhos, porque a ajuda não é regular. "Quando há distribuição, comemos. Quando não...", diz Muzima. "É nesses campos que a desnutrição se alastra e mata. No Congo, a maioria dos moradores sobrevive da agricultura familiar. Quando têm de fugir, deixam para trás a casa e essa forma de subsistência", diz a chefe de enfermagem Geneviève Dereerper, da Médicos Sem Fronteiras.
Mesmo nos campos reconhecidos pelo governo, a ajuda é escassa. Na semana passada, o Programa Mundial de Alimentos da ONU admitiu não ter os recursos necessários para dar assistência a um número cada vez maior de deslocados. Segundo a organização, pelo menos 6,4 milhões de congoleses precisam de comida e de ajuda emergencial - e não conseguem.
Muzima consegue alimentar as crianças embrenhando-se no mato para buscar lenha para vender ou fazendo bicos em lavouras alheias. Não ganha nada, apenas troca por comida, como se faz nos vilarejos, onde os aldeões trocam alimentos em mercados de escambo. Num início de tarde, ela voltava com a lenha quando foi surpreendida por um estranho e estuprada pela segunda vez. "Eu fujo da guerra, mas ela me persegue."



quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A descida da Síria ao inferno


O custo humano, moral e estratégico da tragédia é alto demais para os EUA; Obama deve apoiar diretamente a oposição

02 de janeiro de 2013
O Estado de S.Paulo
O ano de 2012 chegou ao fim e a Síria continua sua descida ao inferno. Pelo menos 40 mil pessoas - provavelmente muitas mais - perderam a vida no conflito e milhões de cidadãos foram obrigados a abandonar suas casas. Nos últimos 12 meses, o ditador Bashar Assad fez recurso, persistentemente, de um enorme poder de fogo com suas forças militares em resposta aos protestos que o povo sírio começara de maneira pacífica. Usando inicialmente, em fevereiro, tanques e artilharia pesada, o regime sírio promoveu ao longo do verão uma escalada nos ataques, com o uso de helicópteros, caças e, nas últimas semanas, mísseis Scud contra a própria população.
O mundo não conseguiu deter essa carnificina. O presidente Barack Obama declarou que o limite - a chamada "linha vermelha" - seria a utilização de armas químicas por Assad. Entretanto, para muitos sírios a linha vermelha fixada pelos Estados Unidos constituiu um sinal verde para o regime de Damasco usar todo seu arsenal de guerra e massacrar o povo impunemente. Muitas dessas armas continuam sendo fornecidas diretamente pelo Irã.
Apesar das advertências feitas pelos EUA, recentemente Assad deu os primeiros passos na preparação de armas químicas para usá-las contra seu povo. Pelo que já conhecemos do regime Assad - e considerando que ele promoveu uma escalada sistemática nesse conflito, com todas as outras armas dos seus arsenais - alguém acredita que esse homem é incapaz de usar armas químicas?
A descida da Síria ao inferno representa uma crescente ameaça para seus vizinhos. Turquia, Líbano, Iraque, Jordânia e Israel defrontam-se com um crescente risco de instabilidade. Quanto mais essa guerra se prolongar, maior o risco de que possa provocar um conflito sectário de dimensões muito mais amplas.
Há meses, nós insistimos que cabe aos EUA, juntamente com nossos aliados na Europa e no Oriente Médio, tomar medidas mais drásticas para deter a matança na Síria e prestar ajuda às forças moderadas da oposição. Especificamente, é preciso fornecer diretamente armas a determinados grupos rebeldes e estabelecer uma zona de exclusão aérea sobre parte da Síria.
Nenhuma das duas medidas exigiria que os EUA enviassem tropas para as zonas de conflito, tampouco que agissem sozinhos. Os principais aliados deixaram clara, reiteradas vezes, sua esperança numa liderança americana mais firme e sua frustração pelo fato de os EUA não optarem por uma ação mais contundente.
O mais perturbador é ver as condições humanas na Síria rapidamente se agravarem. Enquanto rejeita os apelos para o fornecimento de armas ou o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea, o governo Obama enfatiza sua promessa de ajuda humanitária ao povo sírio. Entretanto, tememos que esses esforços também estejam fracassando.
Segundo representantes e especialistas americanos e europeus, 70% da assistência externa que está sendo enviada à Síria acaba sendo direcionada para áreas controladas pelo regime. Pessoas que estiveram recentemente em Alepo contaram que não viram nenhum sinal da ajuda americana naquela cidade, tampouco os habitantes tinham informações sobre a assistência americana. Consequentemente, no norte da Síria, controlado pela oposição, as pessoas estão morrendo de fome, de frio e de doenças em razão da escassez de alimentos, combustíveis e remédios.
Auxílio. O fato de a assistência humanitária americana não estar chegando ao povo sírio não só agravou a crise humana, como também criou oportunidades para grupos radicais oferecerem auxílio e, com isso, conseguirem maior apoio do povo sírio.
Para muitos, os extremistas parecem os únicos a se preocupar em ajudar os sírios na fuga. Ao mesmo tempo, os moderados da oposição síria são desacreditados e menosprezados diante da nossa falta de auxílio - incluindo a recém-criada Coalizão Nacional Síria, que integra grupos anti-Assad, foi possibilitada em parte pela diplomacia americana.
Embora as recentes deserções do regime e os revezes no campo de batalha indiquem que Assad já não consegue manter o poder, esse conflito poderá durar mais tempo, a um custo terrível e cada vez mais elevado para a população síria, para os vizinhos e para os interesses e o prestígio dos EUA. Não é tarde demais para evitar uma calamidade estratégica e moral no país, mas para isso é imprescindível uma liderança americana corajosa e decisiva que deve vir do presidente Obama.
Os EUA precisam, juntamente com seus aliados, canalizar a assistência diretamente ao conselho de oposição para que seja distribuída nas áreas que se encontram nas mãos dos rebeldes. Precisamos fornecer armamento e outros tipos de assistência ao comando militar da oposição. E devemos impor uma zona de exclusão aérea em algumas regiões do país, incluindo o uso de baterias de mísseis Patriot americanos na rota para a Turquia, com o objetivo de proteger o povo no norte da Síria dos ataques aéreos de Assad.
Se persistirmos no atual caminho, os futuros historiadores poderão considerar o massacre de civis inocentes e o consequente risco para os interesses nacionais e a moral dos EUA um vergonhoso fracasso da liderança do nosso país e um dos capítulos mais negros da nossa história. Essa deve ser uma preocupação para todos nós, enquanto oramos pela paz e pela boa vontade nesta época do ano. 
 TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-descida-da--siria-ao-inferno-,979702,0.htm

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Expulsos pela fome, somalis lotam campo de refugiados

Maior centro de refugiados do mundo, Dadaab, no Quênia, recebe 1,5 mil pessoas por dia
20 de agosto de 2011

Jamil Chade, enviado especial a Dadaab

Mãe e filho em Dadaab, maior campo de refugiados do mundo - Jamil Chade/AE
Mãe e filho em Dadaab, maior campo de refugiados do mundo. Jamil Chade/AE

DADAAB, FRONTEIRA ENTRE QUÊNIA E SOMÁLIA - "Essa cidade não deveria existir”, diz Maira. A refugiada da Somália refere-se ao Campo de Dadaab, um verdadeiro testamento vivo da tragédia de toda uma região da África e, hoje, um certificado da falência da estratégia de combate à fome.

A reportagem do Estado está convivendo com os 440 mil refugiados que se amontoam no acampamento mantido pela ONU entre a fronteira da Somália e do Quênia. Considerado o maior campo de refugiados do mundo, Dadaab é resultado de guerras, miséria e agora da fome que atinge o Chifre da África.

Há alguns anos, a esperança da ONU era a de que uma solução começasse a ser dada aos refugiados que chegaram 20 anos atrás ao local. Mas a eclosão nos últimos meses de uma das piores ondas de fome em 60 anos na África enterrou esse plano. Desde o início do ano, 170 mil novos refugiados foram para Dadaab. Por dia, 1,5 mil pessoas chegam ao campo.

Na fuga da fome, o caminho para muitos é dos mais dramáticos. Sobreviveram à falta de alimentos, ao calor, à falta de água, às milícias, aos grupos de bandidos e mesmo aos animais. No caminho, centenas de mulheres são alvo de violência sexual e chegam grávidas.

De 30 para 440 mil pessoas

O acampamento foi criado em 1991, com o objetivo de receber refugiados da guerra civil na Somália. Cerca de 30 mil pessoas eram esperadas. Em poucos meses, o local teve de ser ampliado para comportar 90 mil refugiados da Somália. Hoje, diante da explosão da fome na África, ele já conta com 440 mil refugiados e, em poucas semanas, serão 450 mil. Os números não dão sinais de ceder, enquanto um volume cada vez maior de ONGs desembarca para construir novos locais de acolhimento, ampliando o perímetro da cidade.

Ao sobrevoar em um monomotor o campo em busca da pista de pouso que serve para a ONU e ONGs abastecerem o acampamento, a primeira imagem que se tem de Dadaab é a de um tapete de retalhos. Os tetos de plástico, lixo e outros materiais das barracas perdem-se de vista. São 50 quilômetros quadrados do que certamente é a cidade mais miserável do mundo.

Para deixar a situação mais dramática, os refugiados pouco a pouco abandonam a alegria de chegar a Dadaab pelo desespero de entender que não terão mais para onde ir. “Saímos de um inferno esperando chegar a um lugar que fosse o reinício de nossas vidas. Mas vemos que estamos em outro inferno”, diz Maira.

Para muitos, Dadaab é uma prisão a céu aberto. Os refugiados não podem se mover livremente, falta comida, água e segurança. Quase ninguém tem trabalho, nem mesmo a perspectiva de um dia sair do acampamento. Expulsos de seu país pela fome e a violência, os refugiados descobrem que também não são bem-vindos no Quênia.

Em Nairóbi, o governo queniano faz de tudo para evitar que o campo se transforme em uma cidade estabelecida. Oficialmente, a fronteira está fechada. “Mas isso não significa nada”, diz Luana Lima, uma pediatra carioca que trabalha no acampamento. “No lugar de 20 dias, estão levando 40 dias para fazer caminhos que evitem a segurança. Chegam aos hospitais em estado crítico.”

Relatos feitos à reportagem apontam na mesma direção. “Estamos em uma prisão e a pena é válida por todas nossas vidas”, conta Abu Mal. “Não podemos sair. Quem sai é preso e sofre nas mãos dos policiais.” Para evitar ser espancado, precisam pagar subornos, algo impossível para refugiados já miseráveis.

Em um recente estudo, a entidade Human Rights Watch acusou o governo do Quênia de usar policiais para intimidar os refugiados. O governo do Quênia fechou desde 2006 sua fronteira com a Somália para evitar novos refugiados. Mas Dadaab continua a ganhar terreno.


Vítimas

Se o número de refugiados é recorde, a outra parte da história é que milhares, em busca dessa cidade, ficam pelo caminho. Hana tem 42 anos e sabe muito bem o que isso significa. Ela herdou a missão de salvar seus netos. Seus dois filhos estão lutando na Somália e sua filha morreu de fome no caminho para o campo. Ela diz que as últimas palavras de sua filha foram para que ela cuidasse dos quatro netos. “Dois já morreram depois que minha filha morreu.”

Para os especialistas da entidade Médicos Sem Fronteiras, o pior ainda está por vir. A previsão é a de que a seca continuará pelos próximos dois meses. A crise foi oficialmente declarada pela ONU em julho. Mas a falta de chuvas e a situação cada vez mais desesperadora já vinham sendo registradas há meses.
Em Dadaab, famílias e ONGs perdem a calma quando a crise da fome no Chifre da África é mostrada no Ocidente apenas como um fenômeno natural. “Não há mais como mostrar garotos esqueléticos e estereótipos da fome nas capas de jornais pelo mundo”, afirma um funcionário de uma ONG que pede anonimato. “Dá a sensação de inevitabilidade.”

Os mais críticos alertam que a imagem da vítima passiva, da fome silenciosa permite que governos promovam ações humanitárias, sem serem questionados sobre como é que o mundo deixou isso ocorrer.

Para os refugiados, o envio de alimentos pelo mundo é fundamental. “Mas não queremos apenas sobreviver”, diz Mohamed, de 43 anos, que desde os 29 anos vive em Dadaab. “Podem mandar alimentos para todos e mesmo assim o problema não será resolvido.”

Wolfgang Fengler, economista-chefe do Banco Mundial em Nairóbi, alerta que a crise vivida hoje no Chifre da África é “obra humana”. Para ele, a seca era previsível e ninguém fez nada. Especialistas apontam o fenômeno do La Niña como provável causa da falta de chuvas neste ano. Para ONGs e para a ONU, só haverá uma solução para a fome na África quando houver um plano e investimentos.

Assim que as primeiras gotas de chuva voltarem a cair na região, não apenas molharão a terra árida. Também darão a conveniente impressão de que o problema da fome terminou. Que era apenas uma fatalidade climática.