sexta-feira, 23 de abril de 2010

Brasília

50 anos de contrastes

Não é miragem. A capital federal no seu aniversário consolida a proposta de levar o desenvolvimento ao interior, mas se converteu em centro de antagonismos sociais

Octávio Costa e Claudio Dantas Sequeira


CIDADE À VISTA
O nascimento da Esplanada dos Ministérios, em 1959,
foi um marco na construção da nova capital



Numa das viagens que fez ao Planalto Central, ao explicar a um grupo de jornalistas estrangeiros que iria construir naquele descampado a nova capital do País, o presidente Juscelino Kubitschek deparou-se com a reação espantada de uma francesa. “Mas o senhor vai erguer a capital num deserto? Isso é um absurdo.” Juscelino rebateu: “Não, minha filha, absurdo é o deserto.” Em agosto de 1961, com a cidade já de pé, o astronauta soviético Yuri Gagarin, ao conhecer Brasília, não escondeu sua perplexidade: “A impressão que tenho é a de estar chegando a um planeta diferente.” Reações como essas são comuns até hoje diante da ousadia de JK. Brasília nasceu debaixo de polêmica. Na opinião do ex-governador do extinto Estado da Guanabara Carlos Lacerda, a construção da cidade deu origem à inflação que corroeu a economia nas décadas que se seguiram. Mas 50 anos correram e Brasília ficou maior que a polêmica. Com 2,6 milhões de habitantes, a cidade ostenta o melhor índice de desenvolvimento humano. O padrão de educação também é excepcional, com a maior taxa de escolaridade na faixa etária dos 18 aos 24 anos. O sonho de Juscelino está consolidado e o cinquentenário da capital do País será festejado na quarta-feira 21. “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil para os portugueses e JK descobriu o Brasil para os brasileiros”, diz Maria Elisa Costa, filha do urbanista Lucio Costa que desenhou a capital juntamente com o arquiteto Oscar Niemeyer e o calculista e poeta Joaquim Cardozo.

ESQUELETO DO PALÁCIO DA ALVORADA

Em 1960, correria para que ficasse pronto dentro do prazo

Nem tudo, porém, saiu como o planejado. Brasília é uma cidade de fortes contrastes, a começar por seu conturbado enredo político. Com pouco mais de um ano de vida, testemunhou em 1961 a patética renúncia do presidente Jânio Quadros. Três anos depois, João Goulart foi apeado do poder pelos militares que governaram autoritariamente o País com mão de ferro por 21 anos. Após a redemocratização, em 1985 Brasília sofreu, assim como todo o Brasil, com a doença e morte do presidente eleito pelo colégio eleitoral Tancredo Neves, que não chegou a ser empossado – ele faleceu no dia 21 de abril. A capital foi palco também do primeiro impeachment de um presidente em toda a história da República: criado na cidade, Fernando Collor de Mello caiu abatido por denúncias de corrupção em 1992. Faça-se uma viagem no tempo, e recentemente a autoestima dos brasilienses foi ao chão com o Mensalão do DEM que levou à prisão o governador José Roberto Arruda. Há quem sustente que tudo isso não passa de coincidência. “Assim como o Rio de Janeiro não é responsável pelo suicídio de Getúlio Vargas, Brasília não é responsável pela roubalheira de hoje em dia. Não há culpa nas cidades, a culpa é dos homens”, diz o deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), que, em seu nono mandato consecutivo, frequenta a cidade desde os anos 1970.


A sequência de eventos desabonadores arranha a imagem da criação de Juscelino. Brasília, hoje, é vista no País como sinônimo do patrimonialismo e desrespeito ao dinheiro público, um lugar onde se trabalha pouco e se rouba muito. Trata-se de uma verdade parcial, injusta com a grande maioria da população brasiliense, honesta e trabalhadora. Os desmandos e os desvios de recursos públicos são praticados pelos políticos, a maioria deles de outros Estados. “Não é verdade que os corruptos, aqui, são mais corruptos que os outros dos demais lugares. O que existe é uma oportunidade maior”, diz o sociólogo Benício Schmidt, professor da UnB. Outro motivo para os descalabros éticos dos parlamentares está na falta de vínculos com a cidade. Quando a capital era no Rio de Janeiro, os políticos se envolviam com a vida local, compravam imóveis em Copacabana e na praia do Flamengo, e mudavam-se com suas famílias. Em Brasília, nada disso acontece. Eles moram em apartamentos funcionais e só passam três dias da semana na cidade, cumprindo o trajeto aeroporto/Asa Sul/ Congresso. “Há uma deturpação pelo fato de os deputados não morarem. Isso cria isolamento e transforma a cidade num grande hotel”, diz o senador Cristovam Buarque, governador do DF de 1995 a 1999. O fato de o poder estar geograficamente distante das pressões e da fiscalização popular também contribui para a prática de atos ilícitos e até para o fortalecimento de pendores autoritários. Se a capital não estivesse tão longe dos grandes centros urbanos, é provável que a ditadura militar não resistisse por 21 anos.

Pelo fato de os parlamentares não criarem raízes na cidade,
ela se transforma num grande hotel


EMBAIXADORA
A Catedral em obras, em 1959, observada por freiras e nos dias de hoje: cartão-postal que já correu o mundo e encantou o vaticano

Apesar de sua trajetória política acidentada, Brasília representa, no entanto, um avanço em termos administrativos. “A representação física do Estado deu certo”, diz Ricardo Penna, ex-secretário de Planejamento do DF e neto de Israel Pinheiro, o engenheiro mestre das obras de Brasília. “Quando se tem uma cidade administrativa, os gestores conversam, os temas fluem mais rápido e isso gera um ciclo virtuoso. Ao aglutinar as instituições num único espaço geográfico, Brasília ajudou no desenvolvimento da administração pública”, diz José Matias-Pereira, professor e ex-coordenador do programa de pós-graduação em administração da UnB. Sem dúvida, a concentração do Poder Executivo deu mais agilidade às decisões que mexem com o destino do País. No início, os funcionários públicos federais resistiram à ideia de viver no Planalto Central, mas ganharam incentivos salariais que perduram até hoje. E, quando presidente, o general Ernesto Geisel exigiu que todos fizessem a opção definitiva entre Rio e Brasília. Como resultado, foi criada uma elite de servidores com cargos e salários de primeira linha e formação cada vez mais especializada.

O Congresso em 1959: local de resistência democrática, mas, infelizmente, também de corrupção.

Brasília também funcionou como força motriz da corrida para o Oeste. Sem a construção da nova capital, o Brasil teria permanecido com sua população concentrada ao longo do litoral. Imaginem-se os problemas urbanos que existiriam com o inchaço ainda maior das grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. A partir de Brasília, foi possível expandir as fronteiras agrícolas para Rondônia, Acre e Pará. A marcha para o Oeste atraiu empreendedores e produtores do Rio Grande do Sul e do Paraná e de Estados do Nordeste. “Sem Brasília não se teria essa soja toda, não se teria o Centro- Oeste desenvolvido. Foi muita coisa boa para o País que aconteceu a partir da transferência da capital para o coração do Planalto Central”, diz a filha de Lucio Costa. Na história do País houve outras marchas, como a Coluna Prestes e as missões do marechal Cândido Rondon, mas pouco resultaram em termos de fixação do homem nessa região. Para haver a fixação do homem é necessária a construção de estradas e cidades. Brasília tornou-se o ponto central de apoio e favoreceu o desenvolvimento de municípios como Anápolis e Goiânia, além de outros da região noroeste. A capital do Brasil chama a atenção do mundo inteiro por seus projetos urbano e arquitetônico, que lhe conferem características sem paralelo em qualquer outra cidade. Ganhou da Unesco o título de Patrimônio Histórico da Humanidade. Alguns prédios de Oscar Niemeyer são belíssimos, como a Catedral, o Congresso e o Itamaraty. O Plano Piloto é marcadamente funcional, com setorialização das atividades sociais. Há muito verde com áreas assinadas pelo paisagista Burle Marx e o lago Paranoá ajuda a amenizar os efeitos da seca. “O projeto de Brasília é tão forte e tão bom que resiste até hoje às interferências que tentaram fazer nele, e vai resistir muito antes de acabar”, diz o arquiteto Carlos Magalhães, que representa o escritório Niemeyer na capital. Para a maioria dos brasilienses, Brasília deu certo. Uma pesquisa do Instituto Soma Opinião e Mercado mostra que 75% da população local está totalmente satisfeita com a cidade e, parcialmente, 21%. Para somente 3% dos entrevistados Brasília não deu certo e 1% não sabe.

Brasília é um retrato do Brasil. As suas mazelas são as mesmas
da maioria das cidades do País

Projetada para no máximo 500 mil habitantes, a cidade tem em seu entorno mais de dois milhões. Grande parte desse contingente trabalha no Plano Piloto. Com as grandes distâncias e o transporte coletivo precário, o uso do automóvel torna-se compulsório. A frota particular supera 1,2 milhão de veículos, quase um carro para cada adulto. O resultado são longos congestionamentos na hora do rush. Acidentes e atropelamentos tornam-se cada vez mais freqüentes. Devido ao contraste de renda entre a periferia pobre e o Plano Piloto, a violência cresce. Os roubos diversos e furtos a residências somam mais de 60% dos índices de criminalidade, que dobraram nos últimos anos. Tornam-se comuns também os assaltos no comércio e os sequestros relâmpagos. Além dos programas de luxo, agenciados por cafetinas conhecidas, a prostituição é visível no setor comercial e nas entrequadras. Nas palavras do senador Cristovam Buarque, “apesar de seu projeto revolucionário, Brasília é um retrato do Brasil e sofre as mazelas das grandes cidades”. Com seus contrastes e maravilhas arquitetônicas, ela continua, porém, a deixar os visitantes perplexos. Ao caminhar pela Esplanada dos Ministérios, na semana passada, a ex-candidata presidencial da França e dirigente do Partido Socialista, Ségolène Royal, exclamou: “C’est folle!” Ou seja, passaram-se 50 anos, mas Brasília continua uma loucura.

http://www.istoe.com.br/reportagens/65991_50+ANOS+DE+CONTRASTES

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