Não é miragem. A capital federal no seu aniversário consolida a proposta de levar o desenvolvimento ao interior, mas se converteu em centro de antagonismos sociais
Octávio Costa e Claudio Dantas Sequeira
CIDADE À VISTA
O nascimento da Esplanada dos Ministérios, em 1959,
foi um marco na construção da nova capital
Numa das viagens que fez ao Planalto Central, ao explicar a um grupo de jornalistas estrangeiros que iria construir naquele descampado a nova capital do País, o presidente Juscelino Kubitschek deparou-se com a reação espantada de uma francesa. “Mas o senhor vai erguer a capital num deserto? Isso é um absurdo.” Juscelino rebateu: “Não, minha filha, absurdo é o deserto.” Em agosto de 1961, com a cidade já de pé, o astronauta soviético Yuri Gagarin, ao conhecer Brasília, não escondeu sua perplexidade: “A impressão que tenho é a de estar chegando a um planeta diferente.” Reações como essas são comuns até hoje diante da ousadia de JK. Brasília nasceu debaixo de polêmica. Na opinião do ex-governador do extinto Estado da Guanabara Carlos Lacerda, a construção da cidade deu origem à inflação que corroeu a economia nas décadas que se seguiram. Mas 50 anos correram e Brasília ficou maior que a polêmica. Com 2,6 milhões de habitantes, a cidade ostenta o melhor índice de desenvolvimento humano. O padrão de educação também é excepcional, com a maior taxa de escolaridade na faixa etária dos 18 aos 24 anos. O sonho de Juscelino está consolidado e o cinquentenário da capital do País será festejado na quarta-feira 21. “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil para os portugueses e JK descobriu o Brasil para os brasileiros”, diz Maria Elisa Costa, filha do urbanista Lucio Costa que desenhou a capital juntamente com o arquiteto Oscar Niemeyer e o calculista e poeta Joaquim Cardozo.
ESQUELETO DO PALÁCIO DA ALVORADA
Nem tudo, porém, saiu como o planejado. Brasília é uma cidade de fortes contrastes, a começar por seu conturbado enredo político. Com pouco mais de um ano de vida, testemunhou em 1961 a patética renúncia do presidente Jânio Quadros. Três anos depois, João Goulart foi apeado do poder pelos militares que governaram autoritariamente o País com mão de ferro por 21 anos. Após a redemocratização, em 1985 Brasília sofreu, assim como todo o Brasil, com a doença e morte do presidente eleito pelo colégio eleitoral Tancredo Neves, que não chegou a ser empossado – ele faleceu no dia 21 de abril. A capital foi palco também do primeiro impeachment de um presidente em toda a história da República: criado na cidade, Fernando Collor de Mello caiu abatido por denúncias de corrupção em 1992. Faça-se uma viagem no tempo, e recentemente a autoestima dos brasilienses foi ao chão com o Mensalão do DEM que levou à prisão o governador José Roberto Arruda. Há quem sustente que tudo isso não passa de coincidência. “Assim como o Rio de Janeiro não é responsável pelo suicídio de Getúlio Vargas, Brasília não é responsável pela roubalheira de hoje em dia. Não há culpa nas cidades, a culpa é dos homens”, diz o deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), que, em seu nono mandato consecutivo, frequenta a cidade desde os anos 1970.
A sequência de eventos desabonadores arranha a imagem da criação de Juscelino. Brasília, hoje, é vista no País como sinônimo do patrimonialismo e desrespeito ao dinheiro público, um lugar onde se trabalha pouco e se rouba muito. Trata-se de uma verdade parcial, injusta com a grande maioria da população brasiliense, honesta e trabalhadora. Os desmandos e os desvios de recursos públicos são praticados pelos políticos, a maioria deles de outros Estados. “Não é verdade que os corruptos, aqui, são mais corruptos que os outros dos demais lugares. O que existe é uma oportunidade maior”, diz o sociólogo Benício Schmidt, professor da UnB. Outro motivo para os descalabros éticos dos parlamentares está na falta de vínculos com a cidade. Quando a capital era no Rio de Janeiro, os políticos se envolviam com a vida local, compravam imóveis em Copacabana e na praia do Flamengo, e mudavam-se com suas famílias. Em Brasília, nada disso acontece. Eles moram em apartamentos funcionais e só passam três dias da semana na cidade, cumprindo o trajeto aeroporto/Asa Sul/ Congresso. “Há uma deturpação pelo fato de os deputados não morarem. Isso cria isolamento e transforma a cidade num grande hotel”, diz o senador Cristovam Buarque, governador do DF de 1995 a 1999. O fato de o poder estar geograficamente distante das pressões e da fiscalização popular também contribui para a prática de atos ilícitos e até para o fortalecimento de pendores autoritários. Se a capital não estivesse tão longe dos grandes centros urbanos, é provável que a ditadura militar não resistisse por 21 anos.
Pelo fato de os parlamentares não criarem raízes na cidade,
ela se transforma num grande hotel
EMBAIXADORAA Catedral em obras, em 1959, observada por freiras e nos dias de hoje: cartão-postal que já correu o mundo e encantou o vaticano
Apesar de sua trajetória política acidentada, Brasília representa, no entanto, um avanço em termos administrativos. “A representação física do Estado deu certo”, diz Ricardo Penna, ex-secretário de Planejamento do DF e neto de Israel Pinheiro, o engenheiro mestre das obras de Brasília. “Quando se tem uma cidade administrativa, os gestores conversam, os temas fluem mais rápido e isso gera um ciclo virtuoso. Ao aglutinar as instituições num único espaço geográfico, Brasília ajudou no desenvolvimento da administração pública”, diz José Matias-Pereira, professor e ex-coordenador do programa de pós-graduação em administração da UnB. Sem dúvida, a concentração do Poder Executivo deu mais agilidade às decisões que mexem com o destino do País. No início, os funcionários públicos federais resistiram à ideia de viver no Planalto Central, mas ganharam incentivos salariais que perduram até hoje. E, quando presidente, o general Ernesto Geisel exigiu que todos fizessem a opção definitiva entre Rio e Brasília. Como resultado, foi criada uma elite de servidores com cargos e salários de primeira linha e formação cada vez mais especializada.
O Congresso em 1959: local de resistência democrática, mas, infelizmente, também de corrupção.
Brasília também funcionou como força motriz da corrida para o Oeste. Sem a construção da nova capital, o Brasil teria permanecido com sua população concentrada ao longo do litoral. Imaginem-se os problemas urbanos que existiriam com o inchaço ainda maior das grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. A partir de Brasília, foi possível expandir as fronteiras agrícolas para Rondônia, Acre e Pará. A marcha para o Oeste atraiu empreendedores e produtores do Rio Grande do Sul e do Paraná e de Estados do Nordeste. “Sem Brasília não se teria essa soja toda, não se teria o Centro- Oeste desenvolvido. Foi muita coisa boa para o País que aconteceu a partir da transferência da capital para o coração do Planalto Central”, diz a filha de Lucio Costa. Na história do País houve outras marchas, como a Coluna Prestes e as missões do marechal Cândido Rondon, mas pouco resultaram em termos de fixação do homem nessa região. Para haver a fixação do homem é necessária a construção de estradas e cidades. Brasília tornou-se o ponto central de apoio e favoreceu o desenvolvimento de municípios como Anápolis e Goiânia, além de outros da região noroeste. A capital do Brasil chama a atenção do mundo inteiro por seus projetos urbano e arquitetônico, que lhe conferem características sem paralelo em qualquer outra cidade. Ganhou da Unesco o título de Patrimônio Histórico da Humanidade. Alguns prédios de Oscar Niemeyer são belíssimos, como a Catedral, o Congresso e o Itamaraty. O Plano Piloto é marcadamente funcional, com setorialização das atividades sociais. Há muito verde com áreas assinadas pelo paisagista Burle Marx e o lago Paranoá ajuda a amenizar os efeitos da seca. “O projeto de Brasília é tão forte e tão bom que resiste até hoje às interferências que tentaram fazer nele, e vai resistir muito antes de acabar”, diz o arquiteto Carlos Magalhães, que representa o escritório Niemeyer na capital. Para a maioria dos brasilienses, Brasília deu certo. Uma pesquisa do Instituto Soma Opinião e Mercado mostra que 75% da população local está totalmente satisfeita com a cidade e, parcialmente, 21%. Para somente 3% dos entrevistados Brasília não deu certo e 1% não sabe.
Brasília é um retrato do Brasil. As suas mazelas são as mesmas
da maioria das cidades do País
Projetada para no máximo 500 mil habitantes, a cidade tem em seu entorno mais de dois milhões. Grande parte desse contingente trabalha no Plano Piloto. Com as grandes distâncias e o transporte coletivo precário, o uso do automóvel torna-se compulsório. A frota particular supera 1,2 milhão de veículos, quase um carro para cada adulto. O resultado são longos congestionamentos na hora do rush. Acidentes e atropelamentos tornam-se cada vez mais freqüentes. Devido ao contraste de renda entre a periferia pobre e o Plano Piloto, a violência cresce. Os roubos diversos e furtos a residências somam mais de 60% dos índices de criminalidade, que dobraram nos últimos anos. Tornam-se comuns também os assaltos no comércio e os sequestros relâmpagos. Além dos programas de luxo, agenciados por cafetinas conhecidas, a prostituição é visível no setor comercial e nas entrequadras. Nas palavras do senador Cristovam Buarque, “apesar de seu projeto revolucionário, Brasília é um retrato do Brasil e sofre as mazelas das grandes cidades”. Com seus contrastes e maravilhas arquitetônicas, ela continua, porém, a deixar os visitantes perplexos. Ao caminhar pela Esplanada dos Ministérios, na semana passada, a ex-candidata presidencial da França e dirigente do Partido Socialista, Ségolène Royal, exclamou: “C’est folle!” Ou seja, passaram-se 50 anos, mas Brasília continua uma loucura.
http://www.istoe.com.br/reportagens/65991_50+ANOS+DE+CONTRASTES
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