terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Pela 1ª vez, música ao vivo na TV estatal

POR SAMY ADGHIRNI
28/01/14
Iranianos estão acostumados a ver músicos tocando instrumentos apenas em canais ou filmes estrangeiros. Na TV nacional, é proibido desde a revolução que levou os aiatolás ao poder, em 1979.
Imaginem, então, o choque que milhões de telespectadores tiveram, na semana passada, ao deparar-se com uma banda tocando ao vivo no programa matinal “Bom Dia Irã”, do canal 1 da toda-poderosa Islamic Republic of Iran Broadcasting (IRIB)?

Eram sete músicos do grupo Avaye Baran, sentadinhos, tocando uma canção em homenagem ao profeta Maomé com instrumentos persas tradicionais. Mais comportado, impossível. O exato oposto do Créu. Mesmo assim, a transmissão foi cortada após alguns segundos.
                           Musical
Foi o suficiente para que a aparição gerasse intenso debate nas redes sociais e na mídia local, onde proliferaram fotos da TV tiradas por telespectadores atônitos.
A pergunta que todos fazem é: a banda entrou ao vivo por descuido da produção ou foi uma jogada das facções liberais próximas do presidente Hasan Rowhani apontando para uma programação mais flexível?
O jornal reformista “Sharq” festejou o que viu como “fim do tabu.” Internautas iranianos estavam eufóricos no Facebook e no Twitter, bloqueados, mas amplamente acessados graças a programas antifiltro.
A alegria se esvaiu depois que o diretor do programa, Gholamreza Bakhtiari, minimizou o ocorrido, sob pressão dos ultraconservadores que têm ojeriza à ideia de capitulação ideológica. “As imagens dos instrumentos que foram ao ar não têm nada a ver com uma mudança na abordagem ou nas práticas da IRIB. Foi apenas um erro da nossa parte”, disse à agência de notícias Fars, próxima dos linha dura. Bakhtiari disse que estava disposto a “assumir as consequências” pelo suposto vacilo.
Há 34 anos, a IRIB se pauta por uma interpretação rígida da lei islâmica, contestada por muitos clérigos, que considera música algo impuro e imodesto, com exceção das marchas militares à glória do regime.
Banir de vez a música colocaria o Irã na mesma categoria que o Taleban, comparação pavorosa para a teocracia iraniana, que detesta ser vista como extremista. O jeito foi enquadrá-la.
Todos os álbuns vendidos legalmente no país precisam do aval do Ministério da Cultura e Orientação Islâmica. Entre as músicas ocidentais, praticamente só a clássica circula em paz. Mulher só pode cantar se estiver acompanhada de um homem. Dança, nem pensar. Shows e concertos, que também dependem do aval oficial, se limitam quase sempre a formações tradicionais. Ou seja que as pessoas podem ver instrumentos sendo executados ao vivo, mas passar na TV não pode. Entenderam?
Na verdade, música ao vivo na TV até pode, desde que os instrumentos não apareçam. Só o cantor pode mostrar a cara. Quando bandas tocam sem vocal nas emissoras da IRIB, a telinha mostra imagens da natureza, campos floridos ou montanhas.
Após a polêmica acerca do “Bom Dia Irã”, a banda fusion Pallett aproveitou convite para se apresentar num canal educativo da TV estatal para fazer um protesto elegante e original: enquanto sua música era tocada no estúdio, o quinteto mimou a execução dos instrumentos. 
O problema, para a IRIB, é que todas essas restrições são facilmente contornadas pelos iranianos. Difícil achar uma casa que não tenha parabólica. CDs piratas de Lady Gaga a Celine Dion são vendidos por jovens que correm entre os carros quando fecha o sinal de trânsito.
Rowhani entendeu esse descompasso e fez campanha prometendo aliviar barreiras à cultura. Por isso, jovens e nem tão jovens votaram nele em massa, dispensando até segundo turno nas eleição de junho.
Desde então, o ministro da Cultura de Rohwani, Ali Jannati, vem travando queda de braço duríssima contra os ultraconservadores que ainda controlam setores chave da teocracia iraniana, incluindo a Justiça e instituições morais. No complexo e fragmentado sistema iraniano, o presidente e sua clique têm poderes limitados.
Já há deputados tentando articular o impeachment de Jannati para puni-lo por ter defendido regras mais brandas para artistas, inclusive na publicação de livros.

A internet é outra briga.
Rowhani, Jannati e aliados querem levantar os filtros e liberar Facebook, Twitter e milhares de outros sites. A exemplo da surpresa com a banda tocando instrumentos na TV estatal, iranianos descobriram, numa noite de setembro, que o Facebook estava liberado. Horas depois, o site só podia ser acessado via antifiltros. Até hoje não se sabe o que aconteceu. Mas é difícil não enxergar mais um capítulo da batalha entre ultras e liberais.
O fato de a turma do presidente terem conseguido cumprir promessa acerca de algo tão simples, ao menos em tese, pode indicar que reformas internas mais profundas ainda são sonho distante.

http://samyadghirni.blogfolha.uol.com.br/

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