domingo, 21 de agosto de 2011

Eco de Gandhi dá voz à ira dos indianos

JIM YARDLEY
DO "NEW YORK TIMES", EM NOVA DÉLI - 21/08/2011

Na "nova" Índia frequentemente obcecada pela riqueza e o status, onde batedores de críquete e astros de Bollywood são idolatrados, Anna Hazare é uma figura que parece vinda de uma era anterior, aparentemente ultrapassada. Sua boina branca pontuda e suas roupas simples de algodão branco evocam uma simplicidade digna de Gandhi. Sua aparência rural despretensiosa é algo que normalmente poderia suscitar risinhos de escárnio da elite urbana indiana.

Mas Hazare, 74 anos, emergiu como o rosto improvável de um movimento popular acalorado na Índia, uma efusão de sentimento público que se concentrou no combate à corrupção, mas também exprime ansiedades mais profundas numa sociedade fustigada pelas mudanças.

Sua prisão, na terça-feira, feita quando ele estava a caminho de um parque em Nova Déli onde pretendia iniciar uma greve de fome como parte de sua campanha contra a corrupção, levou milhares de pessoas a sair para as ruas de cidades em todo o país. Sob pressão pública, as autoridades tentaram libertá-lo horas depois, mas Hazare se negou a deixar a prisão a não ser que fosse libertado incondicionalmente. Na quinta-feira os dois lados chegaram a um acordo, e a expectativa era que ele deixasse a prisão na sexta-feira para liderar uma greve de fome e um protesto de massa no centro de Nova Déli para reforçar sua reivindicação de que o governo crie uma agência anticorrupção poderosa e independente.

Saurabh Das/AP

O ativista indiano Anna Hazare, após deixar a prisão, na sexta passada, em Nova Déli

O ativista indiano Anna Hazare, após deixar a prisão, na sexta passada, em Nova Déli

O clamor público que Hazare desencadeou suscitou comparações inevitáveis com os levantes democráticos da primavera árabe. Mas a maioria dos analistas concorda que o movimento da Índia é diferente. À sua própria maneira, contudo, ela pode mostrar não ser menos importante.

A Índia já possui as liberdades democráticas reivindicadas pelos manifestantes no Oriente Médio e norte da África, e, após duas décadas de crescimento econômico, sua influência global é crescente. No entanto, o país também está passando pelo que um observador descreveu como um período "de agitação", com a explosão de frustrações em torno das rodovias ruins, escolas de baixo nível, inflação, disparidade crescente de renda e corrupção oficial onipresente.

Em cada um desses problemas também está presente uma desilusão crescente com o processo político da Índia e uma desconexão cada vez maior entre a classe governante e os governados, algo que torna o problema da corrupção especialmente explosivo. À medida que as multidões que apóiam Hazare foram crescendo e ficando mais acaloradas, esta semana, inúmeras pessoas pareceram estar chegando às ruas de Nova Déli contando histórias sobre corrupção oficial.

"A classe média é a mais afetada pela corrupção", disse Asha Bhardaaj, uma mulher que viajara mais de 48 quilômetros dos subúrbios para participar de uma manifestação. "A classe alta não é afetada. Ela pode conseguir o que precisa, pagando por isso."

A atração exercida por Hazare parece ter sua origem em parte nos valores tradicionais que ele personifica. Hazare é um ativista social de longa data que vem fazendo campanha contra a corrupção há quase duas décadas no Estado de Maharashtra, vivendo de uma pensão militar e financiando obras beneficentes por meio de donativos. Se suas roupas evocam Mahatma Gandhi, o fundador da Índia, o mesmo pode ser dito de suas táticas de protesto não violentas: greves de fome e marchas pacíficas.

Mas Hazare e seus assessores já mostraram que são hábeis em lidar com as exigências da política moderna. Eles superaram estrategicamente a polícia e as autoridades governamentais que tentaram desarmar o movimento anticorrupção, depois de a decisão ter se mostrado um tiro que saiu pela culatra. Além disso, eles vêm explorando a cobertura incessante, muitas vezes sensacionalista feita pelas emissoras de TV indianas para aumentar o apoio público para sua causa. Hoje o rosto de Hazare é visível em quase todos os lugares da Índia.

Hazare e seus assessores --um grupo de advogados e ativistas sociais destacados que é apelidado de Time Anna-- passaram meses fazendo campanha em todo o país. Seus assessores distribuem vários e-mails por dia a jornalistas, com informações atualizadas, e seus assessores mais próximos usam a mídia social para entrar em contato com seguidores jovens. Na manhã da quinta-feira, um dos assessores, Kiran Bedi, recorreu ao Twitter para anunciar um avanço nas negociações com as autoridades.
Mais tarde na quinta-feira Behdi divulgou um vídeo com Hazare feito no interior da prisão Tihar, onde ele está detido.

Enquanto isso, o Partido Nacional do Congresso, que está no poder, vem passando a impressão de estar assustado, despreparado para o ressentimento expresso contra o governo e incapaz de apresentar um argumento contrário coerente. Um porta-voz do partido lançou um ataque pessoal contra Hazare, descrevendo-o como uma figura corrompida, enquanto outro acusou os Estados Unidos de dar apoio ao movimento anticorrupção.

"Este é um momento moral", disse Jayaprakash Narayan, um ativista social da cidade de Hyderabad. "As pessoas estão fartas da corrupção. E o governo não vem mostrando tino político nenhum para tratar com isso. Há muito sentimento de revolta no país, um desejo de acabar não apenas com a corrupção, mas com a política tal como ela é feita hoje."

Hazare nasceu em 1937 na zona rural de Maharashtra, com o nome de Kisan Baburao Hazare. Ele ainda fala o marathi como sua primeira língua. Mais tarde, assumiu o nome Anna. Além de sua admiração por Gandhi, ele tirou inspiração de Swami Vivekananda, um reformista destacado do século 19. Tendo topado com os ensinamentos de Vivekananda enquanto servia no exército indiano, Hazare decidiu dedicar sua vida ao serviço público depois de ter escapado da morte por pouco enquanto atuava na fronteira do Paquistão, segundo sua biografia oficial.

Ele serviu o exército por 15 anos, o que lhe deu direito a uma pensão, e aposentou-se no Maharashtra, passando a dedicar-se ao trabalho social. Hazare já recebeu dois dos mais importantes prêmios civis da Índia por seu trabalho, que inclui esforços para ajudar flagelados da seca e o trabalho para criar um "vilarejo modelo", sustentável, nos moldes propostos por Gandhi.

Na década de 1990 Hazare começou a fazer greves de fome em Maharashtra para pressionar autoridades estaduais ligadas à corrupção, várias das quais acabaram sendo afastadas de seus cargos. Em dado momento ele foi alvo de acusações contrárias, segundo as quais o dinheiro de uma de suas fundações teria sido usado para pagar por sua festa de aniversário.
Uma comissão nomeada pelo governo concluiu que o dinheiro foi gasto de forma imprópria, mas que não houve corrupção pessoal por parte de Hazare.

Anna Hazare vem ganhando destaque nacional grande desde a primavera deste ano, quando ele veio a Nova Déli para iniciar uma greve de fome para reivindicar que o governo apresente ao Parlamento um projeto de lei para a criação da agência anticorrupção, conhecida como uma "lokpal". Quando, inesperadamente, milhares de pessoas saíram às ruas para apoiar sua reivindicação, o governo convidou o Time Anna para unir-se a um comitê especial que iria redigir a lei da lokpal.

Durante várias semanas no início do verão Hazare fez visitas periódicas a uma casa de hóspedes do governo em Nova Déli, enquanto participava de reuniões do comitê. Em entrevista que concedeu no início de junho, ele falou várias vezes em tom dramático sobre a necessidade de eliminar a corrupção, prevendo também que o povo voltaria a lhe dar seu apoio, se fosse preciso.

Ele vinha percorrendo o país, aparecendo em comícios para angariar apoio para a lokpal.

"Sim, eu me sinto empoderado", disse Hazare em junho. "Isso acontece porque grande número de pessoas se posiciona comigo. Porque, tirando isso, o que eu tenho? Sou um pedinte.
Vivo em um templo. Não tenho talão de cheques. Possuo apenas uma planta e uma cama."

Os métodos e as metas de Hazare não causam boa impressão em todos. Críticos o acusaram de tentar sequestrar o processo democrático por meio de táticas de pressão. Outros avisaram que o tipo de lokpal que ele visualiza poderia prejudicar o equilíbrio das instituições democráticas do país, acusando seu grupo de intransigência.

As negociações em torno da legislação da lokpal acabaram fracassando em junho. Desde então o governo apresentou um projeto de lei ao Parlamento durante a sessão atual deste, mas Hazare o criticou, dizendo é brando demais. Esta semana ele veio a Nova Déli para iniciar nova greve de fome, quando a polícia o deteve.

Sob o acordo fechado para sua libertação, Hazare concordou em limitar sua greve de fome a 15 dias no máximo, e a polícia disse que vai revogar as restrições impostas inicialmente ao número de simpatizantes autorizados a assistir ao protesto.

Diante da prisão de Tihar e em outros pontos da cidade, as pessoas vêm gritando o nome de Hazare e expressando seu repúdio à onipresença da corrupção no cotidiano. Um universitário reclamou, dizendo que as famílias ricas conseguem comprar o ingresso de seus filhos nas melhores faculdades.l O dono de uma transportadora se queixou de ter que pagar propina de 10% a um funcionário para conseguir um certificado que comprova que pagou o imposto de transporte sobre seu veículo.

"Hoje, quando estávamos vindo para cá, um policial do trânsito parou nosso veículo e sugeriu que lhe déssemos algum dinheiro", contou Ajab Singh Gujar, o dono da transportadora. "Eu gritei 'vitória a Anna Hazare!'. O policial nos deixou passar na mesma hora, sem pagar propina nenhuma."

Tradução de Clara Allain

http://www1.folha.uol.com.br/mundo/962873-eco-de-gandhi-da-voz-a-ira-dos-indianos.shtml


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